Pesquisar este blog

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Esquecimentos - Meu primeiro conto premiado


Um dia desses andava pela rua. Um passarinho voou na minha frente e perdi a linha de raciocínio. Fiquei intrigada porque sei que estava em mente uma ideia realmente original. Depois de dedicar dois ou três minutos na tentativa de retomar de onde parei, desisti, pois pensando bem, se era tão importante, não teria se desvanecido tão fácil. Segui em frente.
Mais adiante, na calçada da rua do Aurora, encontrei Ricardo sentado e admirando a bela vista dos últimos raios de sol da tarde refletidos no rio Capibaribe.
-Boa tarde, amigo, como vai Tereza? – perguntei por obrigação social, detestava Tereza e sua antipatia mal disfarçada.
- humm, boa tarde, ela está bem, acho eu. – respondeu Ricardo um tanto ressabiado. Imaginei que o casamento não ia tão bem, se ele estava sozinho num sábado, ainda mais com aquelas roupas esquisitas. A calça Jeans rasgada necessitava de óbvios remendos aqui e ali. 
Crianças correndo e gritando passaram do nosso lado, pareciam animadas e descontraídas. Um pouco mais à frente, sentadas nos bancos, duas ou três mães observavam um tanto apreensivas o movimento das crianças junto de nós dois.
- E os meninos? – perguntei para puxar assunto.
- Parecem felizes – achei meio vaga a resposta de Ricardo, acho que uma separação realmente havia acontecido, talvez já fizesse um tempo, me perguntei como não fiquei sabendo, eram tão próximas as nossas famílias. Pensei se deveria alertar Ricardo, que a separação não era motivo para deixar de ver os filhos, achei melhor não me meter, não sem saber um pouco mais sobre a situação.
- Casamento é complicado, nem sempre dá certo, né? – resolvi dar oportunidade para que o assunto surgisse.
- É, parece que para mim, ainda não deu para chegar lá. E já estou passando da idade. – Achei a resposta enigmática e Ricardo meio melancólico. Como ele parecia solitário, resolvi interromper o meu caminho e sentar do seu lado naquele banco de cimento comprido junto do rio.
- Vê o rio? Ele sempre corre para o mar. Podem ocorrer desvios no caminho, algumas quedas podem surgir, mas olhando de fora são belas as cachoeiras. E o rio produz vida por onde passa. É bonito, além de realmente necessário. Assim são os casamentos: podem ser complicados, mas são necessários à vida. O curso natural do rio é o mar, e o mar é objetivo de ouro, é a chegada no fim da linha. Chegar no final, certos de que fizemos o que estava ao nosso alcance para que a vida fosse plena é o objetivo maior. O mar é olhar para trás e relembrar, feliz, tudo o que passou. As ondas jogam as lembranças na areia, só para as puxarem de volta logo em seguida. É melhor que sejam boas as lembranças, para que o relembrar não seja amargo, é mais bonito quando as ondas são azuis. O rio é turvo, mas no final, no mar, as coisas são mais claras e a gente entende. – Me espantei comigo mesma. Minhas palavras foram espontâneas, mas pareciam que pertenciam a uma idosa, não a mim, que mal tinha completado trinta anos.
- Você deveria escrever isso, é bonito, além de ter sentido, ainda que seja meio estranho. Você tem papel e caneta? Posso comprar pra você. -  O oferecimento educado de Ricardo me deixou pensativa, - É claro que tenho papel e caneta em casa, - enfatizei com um franzir da testa – Vou tentar lembrar até chegar lá. – respondi orgulhosa e confusa.
- Bem, já é hora de ir. Você tem certeza que não quer uma ajuda? Posso garantir o seu jantar dessa noite. – Ele parecia oferecer de modo gentil, mas por algum motivo, apesar de perceber que realmente tinha fome, balancei a cabeça negativamente.
 – Até mais, a gente se vê por ai. – me despedi e segui meu caminho para a Av. Conde da boa Vista, se calhasse, assistiria um filme no São Luiz, se não, talvez umas compras na Mesbla serviriam para me tirar daquele clima meio melancólico que Ricardo me metera. Ou será que eu já estava assim? O que afinal eu estava pensando mesmo? [...] Finais de casamento são tristes, espero que eles se entendam, uma pena que ele não quis se abrir comigo.
Sempre gostei de caminhadas, segui pela Boa Vista, ignorando o apelo da diversão fácil do cinema. Achei que as lojas pareciam diferentes demais do que eu lembrava, quanto tempo será que eu não venho aqui? Parecia que hoje a sensação de esquecimento me perseguia em cada esquina.
Na frente de uma loja de roupas, de relance na vitrine vi uma velha meio suja refletida, tomando um pequeno susto, resolvi entrar.
– Gostaria de um copo de água?  ofereceu a vendedora, que, por algum motivo, parecia ter pena de mim. Seus olhos, contudo, eram tão bondosos, que aceitei o oferecimento com um aceno positivo de cabeça.
Bebi a água fornecida num copo descartável e a entornei de uma só vez, estava com sede também, sede demais.
- Você só não pode demorar muito, por que o gerente já vai chegar e ele não gosta que eu ofereça água para quem não é cliente. – falou a moça meio que se desculpando.   
Agradeci, mas saí ofendida, como ela poderia supor que eu não era uma cliente?
Esbarrei num jovem aflito na saída da Loja, que parecia estar procurando alguém.  – Mãe, graças a Deus que eu te achei, onde você foi? Não faz isso mãe, não faz não. – Falou o jovem que me abraçava efusivamente enquanto atropelava as palavras.
Como ele parecia confuso, tive pena, talvez fossem as drogas. Já pensou eu com filho de barba? Ele até me parecia familiar, mas era impossível, é claro que eu lembraria.
- Que é isso menino, eu te conheço? Falei com firmeza, ainda que suavizando com um sorriso no final, não queria confusão.
- Mãe, você piorou! – Lamentou o rapaz -  Faz três dias que você sumiu, te procuramos por toda parte. Onde você estava?
Fiz um esforço para recordar onde estive nos últimos dias, e eu simplesmente não lembrava. Voltou aquela sensação de que em algum lugar no meio do caminho eu tinha perdido... que lindo pássaro!

Publicado na coletânea de Contos e Poesias da 2ª Edição do Concurso Literário TJPE - O Judiciário em conto e verso - Realizado em agosto 2016